[Prometi compartilhar o que sinto neste momento de luto... Ainda não é minha reflexão sobre a Morte, mas decidi compartilhar meus sentimentos...]
Foram longos seis meses... Em quatro as chances de reverter à situação pareciam possíveis, mas logo a esperança se dissipou: poderíamos auxiliar a prolongar a vida e o sofrimento, mas não havia mais jeito.
Por longos seis meses o foco foi minha mãe. Eu custo acreditar em algumas coisas deste mundo e por isso, sem querer, me foco no assunto ou na situação e não consigo ver mais nada. Não conseguia crer que ela estava doente. Não conseguia crer que a doença poderia matá-la.
Por seis meses, nossa vida pareceu um carrilhão que saia pouco a pouco dos trilhos. Por quatro cuidei de minha mãe depois que deu entrada no hospital sem grandes chances de recuperação. Teve alta, veio pra minha casa. Dei mais que carinho, atenção e um tratamento digno: lhe dei minhas energias, pois ela precisava de força para reagir. Fiquei doente. Meu marido ficou desempregado, meu filho mais novo ficou mais gordo e mais desinteressado pela escola, o filho mais velho se preocupava e acreditava que deveria fazer algo e o do meio estava perdido.
Não pude mais cuidar de minha mãe. Os quatro meses reduziram-se a dois. O último foi de idas e vindas ao hospital e na última vez foi direto para a UTI e só saiu dali para o oitavo andar do Pérola Byington. Chegava o momento de nos despedirmos dela. Mas ela não queria ir, ainda havia algo que a mantinha aqui. Seu sofrimento se prolongava além do que um ser humano comum é capaz de agüentar. Sua morte lenta era assistida diariamente.
Quando ela enfim se rendeu, descansou serenamente. Ao longo de minha vida acostumei-me a rabiscar seu nome ou vê-lo em tantos papéis - a maioria de cobranças ou de exames médicos. Sempre achei seu nome bonito. Alice... Sonhava sempre um mundo só seu de maravilhas... Foi estranho ver seu nome na placa que indicava a sala do velório. Ela decidiu partir não no dia do aniversário de alguém, não numa data especial comemorativa, ela se foi no dia de Finados pra não ser nunca esquecida. Como esquecê-la? Antes dela e, duvido que depois dela, eu vá conhecer alguém que insistiu tanto pela própria vida. Meu pai me ensinou a viver, mas minha mãe me ensinou a continuar vivendo.
E como encarar a morte, ainda mais assistindo alguém a enfrentando de peito aberto diariamente? Não há receitas para se preparar ou encarar a Morte... Foram quinze anos lutando para continuar viva. Foram quinze anos vencendo o Câncer de mama, o Mioma que lhe roubou útero e ovários, quatro Pontes de Safena e o Câncer voltou. Dentro destes 15 anos, assistimos meu sogro definhar rapidamente com um Câncer. Quando descobriu-se o mal só lhe restavam três meses... Ele se foi e lhe demos 'Adeus'. Pouco tempo depois passamos a cuidar da nossa 'bisa' - avó de meu marido - sempre tão forte e disposta, não aguentou o choque de ver seu filho mais dedicado partir antes dela. Tudo que não havia envelhecido agora a consumia lentamente, fazendo a sofrer diariamente. Ela se foi, nos meus braços, e lhe dissemos 'Adeus'. Não havia passado muito tempo, um de meus amigos de infância, daqueles amigos feito irmão mesmo, subitamente partiu e eu lhe disse 'Adeus'. Diante de nenhum deles, nem dos outros amados que se foram antes deles eu derramei uma lágrima sequer. Não conseguia nunca sentir nada.
Eu era apenas uma criança quando tive minha primeira perda: a melhor amiga com quem eu brinquei na tarde do dia anterior de repente sofreu uma queda, partiu e eu simplesmente lhe disse 'Adeus'. O Maestro Sebastião, nossa vizinha de toda vida e nossa benzedeira dona Hilda, seu Irineu, meu amigo Paulinho, Maurício, minha grande amiga Ester, meu avô Shimada, meu tio Roberto, tia Irma, os vizinhos e os conhecidos foram tantos que partiram... Eu apenas dizia 'Adeus'.
Quando alguém deixa este mundo eu não sofro conscientemente... Não há choro, não há nenhum sinal visível de luto ou dor. Muita gente estranha... Não, não sou tão forte assim... Mas é que enquanto se está vivo, fazemos tudo o que podemos pelo outro - é assim que deve ser. Se há vida, há esperanças. Enquanto vivos podemos mudar tudo, mas há apenas uma coisa neste mundo que não podemos dominar: a Morte.
Ela vem e de repente - o máximo que faz em alguns casos é dar um vago aviso. Não importa se rico ou pobre, branco ou negro, hetero ou homossexual, adulto ou criança, ela vem pra todos. E quanto vem, não adianta tentar despistá-la: ela sempre irá arrumar uma desculpa para levar alguém. Se for a sua hora, vencerá a doença, mas virá um acidente. Levará uma bala no corpo, sobreviverá, mas o coração pode decidir parar. Quando chega a hora, a Morte arruma uma desculpa...
E não existe a morte mais ou menos sofrida: toda morte é doída! É como nascer, nascer também dói! Porque começamos a morrer quando nascemos! Já chegamos neste mundo com um prazo de validade! Podemos adiantar ou adiar, mas o dia de ir sempre chega! Depende da vontade: conheço pessoas que despencaram num abismo dentro de um caminhão de uma altura de cinqüenta metros e ninguém se feriu. Conheço pessoas que numa batida menos séria no trânsito bateu a cabeça e morreu. Ás vezes, não é a hora! Outras vezes, a pessoa não se rende! Porque tem gente que leva uma bala perdida e morre, e tem gente que leva dois tiros no peito e sobrevive. Tem gente que está dentro de um veículo que colide e morre, tem gente que numa colisão mais grave sobrevive.
Não há receita para enfrentar a morte... Temos duas mentes: a do corpo e a da Alma! A Alma sempre sabe o tempo que tem que cumprir, nunca deixando de lado o desejo de voltar pra casa. O corpo é frágil, se cansa fácil, mas sabe que pertence a este mundo e que nele ficará... Tanto pode tentar segurar sua Alma com toda sua vontade, quanto pode deixá-la livre por causa do cansaço.
Minha mãe se foi... No dia de Finados o cemitério lotado de pessoas visitando os túmulos com seus mortos... Nós e outra família enterrávamos nosso ente querido. Eu olhava pra dentro do caixão e ela parecia dormir. Pensei em chamar para ver se realmente não dormia... Fixei meus olhos nela quando o caixão se fechou como que buscando a certeza de que era realmente ela que estava ali dentro... Mesmo assim, eu não senti nada! E agora, enquanto escrevo, ainda não sinto e parece que nada aconteceu... Sempre foi assim... Porque quando a Morte vem, não importa o quanto você chore, o quanto você sofra e se desgaste, nada vai mudar esse fato e você ainda precisa seguir... Não importa todas as precauções que você tome, quando chegar sua hora nada vai impedir sua partida.
Sofremos a dor da perda porque somos egoístas... Não paramos pra pensar se o tempo daquela pessoa foi cumprido ou se ela foi poupada de coisa pior... Nossa insistência em pronomes possessivos nos faz crer que temos alguma coisa de fato e a perdemos e ninguém quer perder nada! Alguém me disse que no caso da minha mãe era fácil, porque ela precisava descansar... Sofria muito com a doença! Os órgãos logo iam começar a parar um a um, ela já tinha dificuldades pra respirar, mas não se entregava. Engano... Todo mundo que morre é guardado de sofrimento maior! Não é consolável a morte por doença e a morte por acidente ou assassinato não tem consolo... Toda morte é morte!Toda morte nos priva de quem amamos ou queremos bem! Toda morte guarda no tempo certo! O que não tem consolo é nosso desejo de querer o outro sempre diante de nossos olhos, como se fossemos capazes de sondar os corações e saber de todas as coisas...
Minha mãe, tia Irma, tio Roberto e meu sogro morreram de Câncer, Eliana morreu de uma queda, Paulinho e Ester morreram em acidente de carro de modo violento, o Maestro morreu de hemorragia por causa de um dente arrancado, a bisa e meu avô morreram por causa da idade e todos foram levados pela mesma dona Morte e todos eram tão importantes pra nós. O motivo da Morte intensifica ou minimiza a dor? O grau de relação com a pessoa faz sofrer mais ou menos? Mas tudo foi ação da Morte...
Não costumamos pensar nisto porque achamos que iremos viver para sempre e isso é natural, pois vamos mesmo: fomos feitos para a eternidade! E eu ainda não consigo sentir nada... Porque aquilo que estava dentro do caixão já não era mais minha mãe... Ela não estava mais ali!
O período de luto é necessário: fecha-se um ciclo e inicia-se outro. Sofremos, sentimos de alguma forma, mas não se desgaste: uma pessoa partiu, você ainda está aqui! Terá que reunir as forças que te restam e continuar seguindo para também cumprir seu tempo.
Há um sentimento de despropósito então na Vida? Esqueça isso: ninguém morre, apenas retorna ao trajeto que conduz de volta pra casa! Não acaba aqui: há uma longa estrada além para ser seguida!
O trabalho Um dia, um Adeus! de Shimada Coelho foi licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição - NãoComercial - SemDerivados 3.0 Não Adaptada.
Deus é meu refúgio! Fica a valiosa herança!