Já nasci fascinada pela mente humana. Enquanto o homem tenta explorar o espaço infinito do Cosmos ou alcançar as profundezas inexploráveis marinhas, a mente se mantém um enigma. Conseguiram desvendar o funcionamento do cérebro a ponto de afirmar que o que sentimos, nossas emoções, são apenas resultados dos efeitos elétricos e químicos do organismo em conjunto com a massa encefálica. Eu nunca acreditei assim...
Há pessoas que observam pássaros, mamíferos, células em microscópios... Eu observo o comportamento humano.Eu desejei com toda minha gana ir o mais fundo que pudesse dessa incógnita. Desejei compreender a mente humana...A faculdade de Psiquiatria seria uma possibilidade, mas dissecar corpos e transforma-los em mínimos pedaços causou-me certa repulsa: respeito mais os mortos do que os vivos.
A faculdade de Psicologia seria uma alternativa não tivesse eu observado demais os psicólogos.
Sempre disse e volto a dizer: o mundo é um imenso laboratório e eu sou minha própria cobaia.Precisou ser assim... Dissecar corpos mortos sabe-se lá a quanto tempo,não me daria respostas. Seria preciso um corpo vivo, e que fosse desnecessário abri-lo. É um atentado contra o ser humano usa-lo para experimentos. Mas, os mesmos humanos consideram benéfico utilizar-se de animais.Ninguém quer se oferecer para experimentação alguma, a não ser que seja para algum tratamento que poderá cura-lo. Para o bem coletivo, usa-se apenas os animais. Os cientistas tão cheios de conhecimento, que buscam desvendar os segredos da mente acreditam ainda que animais não sentem como nós.Mas servem para morrer depois de muita tortura,para que nós vivamos bem... Irracional!
Eu ainda era criança quando decidi começar meus experimentos com animais. Se eu os observasse o bastante para concluir algo, seria capaz de fazer o mesmo com humanos. Conclui isso certa vez quando dissequei uma lagartixa morta. Meu pai retirava os telhados de barro da casa dos fundos, e haviam muitas delas. Uma acabou sendo esmagada e minha irmãzinha decidiu que devíamos enterrá-la.
Desejei naquele momento compreender melhor esse rito humano. Esvaziei a caixa de fósforos da minha mãe, peguei algodão e escolhi um lugar no canteiro para enterrá-la. O local foi o mais próximo de flores... Mas, para fazer o rito completo, era preciso a autópsia. Procurei uma faca afiada e não havia. Peguei a lâmina de barbear de papai. Virei a barriga da lagartixa pra cima e fiz uma incisão de cima a baixo com cuidado. Com um palito, olhávamos como era por dentro... Mamãe brigou quando me viu com a agulha de costura e a linha, costurando a barriga do bichinho.
Ela não cabia na caixa de fósforos, então precisei colocá-la de um modo que coubesse toda, feito um caracol. O algodão forrava a caixa... Achava interessante o interior dos caixões, forrados de cetim,rendas e alguns possuíam um pequeno travesseiro, como se o morto pudesse sentir desconforto. Essa observação me fez concluir que a maior parte do rito na verdade, é para quem está vivo. A mente não consegue processar que aquele corpo que ora compartilhava a vida com seus entes, está vazio.
Ao enterrar a caixa de fósforos, medi o que achei ser proporcional a sete palmos. Minha irmã chorava de pena. Talvez aquela lagartixa fosse a mãe de um dos montes de ovos encontrados no telhado. Em movimentos lentos, coloquei a caixinha no buraco, feito propositadamente em retângulo, minha irmã jogou o primeiro punhado de terra, e eu enterrei lentamente. Fizemos uma cruz com palitos de fósforos, e procuramos flores pequenas para cobrir.As miúdas flores rosadas dos trevos serviu.
Lá se foi para o céu das lagartixas! E sobraram muitos ovos órfãos. Decidi abrir um deles. E abri com cuidado. Faltava muito para chocar. Naquele momento, não tive outra coisa a dizer para minha irmã: '-Vê só? Os bebês de lagartixas dentro dos ovos não são muito diferentes dos bebês dos humanos quando começam a crescer nas barrigas...' Foi exatamente neste momento que passei a ver os animais como iguais.
E assim foram os anos de minha vida: cada dia um grande experimento. Uma vida repleta de acontecimentos estranhos onde um dia quase nunca era normal, necessitava de estudos... Hoje, muitas pessoas me consideram uma pessoa convicta... Querem saber o que li, onde estudei para possuir tanta convicção... Foi no laboratório!Meu último experimento durou quase quatro anos. Entrei em confinamento completo, não saindo nem no quintal. Não queria atender o telefone, nem ler jornal, nem TV, nem nenhum tipo de notícias, não queria receber visitas, nem ir a casa de ninguém. As únicas pessoas com quem tive contato eram meus filhos, marido, mãe e irmãos. Estes últimos, assim como sogra e cunhados, raramente.
Mesmo assim, me isolava ao máximo dos adultos, e mantinha comunicação com as crianças. Não fui mais a mercado, médico, feira, rua, calçada, a lugar algum. Incomunicável...Os métodos usados foram bem elaborados, mas não registrados. Não queria correr o risco de ninguém encontra-los. Era preciso que o fluxo natural da Vida estivesse atuante. Queria ver como o tempo corria com base em escolhas. Queria ver como um animal se sente preso em gaiola ou jaula. Queria ver até que ponto uma pessoa enlouquece por que acontece simplesmente ou porque se entrega...
Perseverei para que o tempo passasse e chegasse o dia em que enfim eu pudesse registrar tudo em papel. Tudo o que foi descoberto. Até descobertas despropositadas.Estão aqui: todos os resultados nos mínimos detalhes.
Eu posso falar com riqueza de detalhes sobre o efeito de drogas, bebidas, situações, o desenrolar do pensamento, do raciocínio, os reflexos da mentira, do engano, da opressão.
Consegui o auge das observações num confinamento que passei a considerar agradável. Um clausulo semelhante ao da borboleta, diferente da lesma. Sentenciei-me a reclusão, que difere daquela sofrida pelos criminosos. Tivessem os criminosos realmente enclausurados, estariam reabilitados... O mundo é bem diferente quando visto através de grades e janelas... Mais diferente ainda sem saber o que se passa lá fora...
Estou pronta pra contar... Sobre o Experimento... Pandora Ostrea!
-=Shimada Coelho=-
São Paulo, 29 de Julho de 2009.
Experimento by Shimada Coelho is licensed under a Creative Commons Atribuição 2.5 Brasil License.
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