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quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Entre Falsas Lembranças tão Reais

[Imagens: de Arquivo Pessoal. Trechos de meu Jardim]


Enquanto a massa do pão cresce, acomodo flores de Ipê amarelo e Jacarandá lilás em um guardanapo de papel. Colocarei dentro de um livro para que sequem e depois sirvam para enfeitar as cartas que escreverei. Para que minha preferência antiquada fique quase perfeita em meio a poluição visual e auditiva da cidade, só me faltava um fogão à lenha.  A fumaça branca do cigarro vai subindo e vou imaginando o que prepararia neste fogão. Relembro o perfume agradável da lenha queimando e do crepitar enquanto o fogo a consome. Adoro o crepitar de madeira queimando. Traz a minha mente falsas lembranças de uma vida que não vivi. Talvez, sejam lembranças perdidas de uma pessoa que nem sei se existiu.

Aquela mulher de cabelos ondulados castanhos é minha personagem preferida. Invejo sua vida solitária. Sozinha em um casebre em meio a uma floresta de árvores centenárias possuí um universo repleto. Bem mais repleto do que a agitada vida urbana.

Aquele casebre simples me faz querer pintar logo as paredes para ter a mesma cortina de voal branca emoldurando a janela por onde agora vejo os pingos da chuva. Em vez de tantas casas coloridas, ela vê árvores e mais árvores. Ela vê árvores ao som do crepitar da lenha queimando.

É ela que me faz ir até o jardim e ficar ali olhando as plantas por horas. E firmo as palmas das mãos na terra para quem sabe me transportar daqui. Se tudo não acontecesse no tempo certo diria que nasci no tempo errado.

Ás vezes, posso vê-la caminhando entre as árvores sem rumo e sem propósito. É como se eu estivesse vestindo o corpo dela. Posso sentir os pés afundarem em porções de folhas secas ao longo do trajeto e ouvir o som destas folhas se partindo. Uma cena tão clara na minha mente que sempre que encontro um punhado de folhas secas eu as piso apenas para ter ao menos um pouco desta sensação. E ela segue caminhando, vez ou outra tocando ou abraçando rapidamente algum tronco enquanto passa.

Então me lembro das gigantescas Paineiras no pátio da escola onde estudei na minha infância. Ali passei oito anos de minha vida. Hoje, quando passo por lá, vejo as mesmas Paineiras e me surpreendo: os troncos não são tão largos como antes e não parecem tão altas. Eu era tão pequenina que elas me pareciam gigantes.

Quando saíamos para o pátio, na maioria das vezes eu corria em direção a elas. Não consigo lembrar porque sempre estava sozinha. Aquela solidão não era algo ruim pois, costumamos lembrar com clareza do que é ruim. As Paineiras cercadas de terra, deixavam amostra na superfície suas raízes enormes. Eu sempre as observava pois pareciam vários braços formando um colo. Ali no centro eu me sentava e me acomodava. E conversava com a árvore, e me perdia encostando a cabeça no tronco e olhando para cima, e imaginava como seria bom subir por ali, e imaginava que ali onde estava sentada havia uma passagem secreta que me levaria para outro mundo. Na falta do colo que não tive, a Paineira me servia tão bem. Era tao acolhedora e me sentia tão segura. Não tinha noção de quanto tempo passava ou quem passava por ali. Os sons dos gritos, risadas e conversas dos outros alunos no patio desapareciam. Não havia a preocupação se alguém passaria por ali e me veria conversando com ninguém no colo da árvore.

Vou me perdendo em lembranças falsas e reais, em sensações prazerosas e um chamado que me convida a abandonar cada vez mais este sistema miserável, desejando ter um pouco de carência emocional. O que percebo é apenas o corpo em batalha fisiológica: enquanto as mulheres da minha idade vão perdendo a libido a minha vai tomando cada vez mais proporção. Mas, estranhamente, em vez de desejar uma cama onde eu poderia fazer amor incansavelmente, o apelo do meu corpo é por aquela floresta de árvores gigantescas por onde eu poderia caminhar até que a escuridão viesse. Entraria no casebre, acenderia a lareira para olhar as estrelas através da fina cortina branca ao som do crepitar da lenha queimando.


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Entre Falsas Lembranças tão Reais de Shimada Coelho é licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivados 3.0 Não Adaptada.

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