Destaque para outras Almas Nuas

domingo, 24 de novembro de 2013

A Lição da Tinta


Apesar do meu pai ser um homem simples, sempre o vi como alguém grande. É auto didata mas, assim como eu, só aprende sozinho aquilo em que tenha muito interesse. O considero sábio pois, pra lidar comigo, nunca precisou levantar o tom de voz, muito menos usar algum tipo de corretivo. Ele conseguia falar apenas com o olhar e ganhou meu respeito quando eu era ainda muito criança. Até o momento, ele é a única pessoa que conseguiria me fazer calar a boca - se mandasse - e a única que consegue me fazer abaixar a cabeça, não por medo mas, pela sabedoria em suas palavras. 

Talvez eu tenha herdado dele a mania de contar histórias. Contar todo mundo sabe contar uma mas, quando contamos histórias há sempre uma lição nas entrelinhas. Ele sempre contou tantas histórias e também sempre usou alguma situação para ensinar. 

Certa vez, ele pintava as paredes da casa onde nasci. E como sempre, em tudo o que ele estava fazendo eu ficava ali, ao lado, observando tudo. Ele tentou me convencer de brincar, tentou chamar a minha atenção para outras coisas mas eu ficava ali, fazendo muitas perguntas e observando, interessada no que ele estava fazendo.

Então, ele pegou uma pequena lata, um pincel estreito e me ofereceu dizendo:
- Você quer pintar também? Sei que você está doida pra pintar a parede. Vou deixar mas, para merecer esta tarefa você vai ter que aprender uma lição. Esta é toda a tinta que vou te dar. Quando acabar não vou dar mais. Você precisa pintar boa parte da parede apenas com isto.

Na verdade, não prestei muito atenção no que ele dizia. Meu foco estava na lata de tinta e no pincel. Eu só queria pintar mas, ouvi o que ele disse e de alguma forma ficou registrado na mente.

Porque comecei a pintar e após sentir o pincel em contato com a tinta e como se espalhava na parede, comecei a pensar em um modo de pintar uma grande área da parede só com aquela quantidade que tinha. Não pensava na lição. Pensava que estava gostando de fazer aquilo e se eu fosse esperta, poderia ficar muito tempo pintando.

Observei o que eu julgava ser uma grande área e determinei até onde deveria conseguir pintar. E apesar de muito pequena, procurei ser cautelosa em não desperdiçar. Logo percebi que desperdiçaria muita tinta se sujasse o chão. Então, molhava apenas as pontas do pincel e pintava com aquela quantidade até que não pudesse continuar. Só então, voltava a molhar o pincel.

Meu pai dizia:
- Deste jeito vai demorar muito.

Eu respondia:
- Não tem problema, estou gostando de pintar.

Lembro perfeitamente que enquanto pintava não pensava em nada. Meu único foco era conseguir pintar e da melhor forma possível. Quase não deu mas, com aquele pouquinho de tinta, consegui pintar toda a área que havia pretendido.

Quando terminei, meu pai não perguntou em momento algum se eu havia aprendido a lição. Os anos passaram e eu cresci. A tinta passou a ser uma ferramenta presente na minha vida. Com ela faço Arte. E uma coisa que sempre estranhei é como minhas tintas sempre renderam muito. Faço vários trabalhos e elas duram muito tempo, rendendo para muitos outros. Então, percebi que nas outras atividades, o mesmo acontecia. Nestas horas, lembrava da lição da tinta mas, não parava pra pensar nela.

Dias atrás, eu e minha família nos reunimos para pintar a fachada da casa. Eu havia inventado a tarefa e ninguém estava muito afim de realizá-la. Lembrei que gostaria de fazer isso sozinha porque eu conseguiria fazer a tinta render para pintar toda a casa. E de fato, terminei a parte da frente da casa e havia gasto apenas um palmo de tinta.

Aconteceu que enquanto eu estava focada em fazer a tinta render para pintar a área pretendida, os outros estavam preocupados em terminar logo. Consequentemente a tinta começou a desaparecer da lata. Havia tinta derramada pelo chão, havia guerra de tinta, havia desperdício e a lata não deu para pintar a parte detrás da casa.

Foi quando a lição da tinta fez sentido embora até então eu aplicasse mesmo sem compreender e disse a minha família:

- Quando eu era criança meu pai me ensinou a Lição da Tinta. Eu deveria pintar uma grande área de parede com um pouquinho de tinta que ele colocou em uma lata. Até hoje quando vou usar algo e sei que aquilo custou meu suor, lembro da latinha de tinta. Imagino quantos dias trabalhados foram precisos para comprarmos esta lata de tinta. E, apesar de ser o suficiente para realizarmos esta tarefa, não deu porque foi desperdiçada. Vocês estavam com tanta pressa de acabar logo que ainda deixaram tudo sujo e mau pintado.Quando vamos fazer algo, é preciso pensar em todo esforço para realizar esse algo. É preciso pensar que, feito de qualquer maneira haverá grande perda mas, se realizado com dedicação só haverá ganhos.

Agora é sua vez de aprender com a tinta. Não precisa pintar uma parede. Basta lembrar o quanto te custou ter o que tem e quanto mais pode te custar se não usar direito. O que você tem de material tem prazo de validade e tempo para uso. Custou alguma coisa para você possuir mas, a lição não se trata de ter objetos. A lição da tinta fala da água e da energia elétrica que você usa, do arroz e feijão, da feira comprada que se deteriora enquanto tantos ainda passam fome... Em tudo o que for realizar, lembre-se da lição da tinta! Quando for comprar e preparar comida, quando for comprar e usar roupas e sapatos, quando guardar se poderia doar, quando arrancar a folha do caderno, quando deixar um livro jogado, em tudo!

Depois desta lição, automaticamente uma outra virá; Todos nós nascemos capacitados para determinadas funções e realizações neste mundo. Basta saber usar direito o que você tem em suas mãos. Nós nascemos cada um com uma ferramenta que o outro não tem e com ela devemos cumprir nossa missão

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A Lição da Tinta de Shimada Coelho é licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivados 3.0 Não Adaptada.

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