Destaque para outras Almas Nuas

sexta-feira, 27 de janeiro de 2023

Uma Voltinha ao Passado


 Arrumei mais uma vez um pretexto para conseguir sair de casa e caminhar. Apesar do calor, o vento está bem presente e refresca. O movimento está tranquilo na parte da tarde: serão as férias ou o  calor que dá preguiça? Sigo caminhando curtindo o vento, buscando sempre onde há calçadas com sombras, imaginando que alguém deve achar esse zig-zag estranho. Sigo e o caminho usado é o mesmo que faço à mais de trinta anos, embora eu esteja no bairro há 51!

Eu nasci no Capão Redondo! Aqui eu fui criada, casei, tive meus filhos, os criei, os vi voar, me divorciei: assisti todas as mudanças que hoje dá sentido a um plebicisto que houve há anos atrás querendo saber se a população aprovava ou não a emancipação do bairro: aqui sempre teve porte de cidade, embora no início fosse roça.

Desde que me casei, o trajeto a pé até a avenida é o mesmo e é seguindo este caminho que passo pela  rua da casa do meu tio mais velho, minha tia e primos. Quando a área foi loteada, os filhos casados de meu avô resolveram comprar terrenos vizinhos para manter a proximidade com ele. Era este meu tio mais velho que ficava com a guarda de meu avô, segundo a tradição japonesa e era na casa atrás, na rua de cima, onde nasci. 

Então, toda vez que passo por esta rua, eu olho para casa de meus tios. Do outro lado da rua existe um córrego a céu aberto. Hoje, quando se fala em córrego na cidade, imagina-se apenas um fluxo de esgoto, mas, exatamente este córrego, era muito frequentado na época em que havia muito mais mato do que gente: muitos vinha de longe pescar. Acredite se quiser: por toda esta região haviam nascentes e por isso, vários córregos cortam o bairro. Alguns foram "sepultados", mas, sabe-se bem onde estavam quando a chuva intensa os trazem a vida!

De repente, senti falta de passar observando a determinação do córrego em continuar vivo apesar do esgoto. Depois de nem sei mais quantos anos de brigas judiciais entre prefeitura e proprietários, resolveram como tornar possível a tão esperada linha do Metrô. A linha será suspensa: passará acima do córrego. Para isto, emparedaram o córrego o estreitando. Quase cinquenta anos observando este córrego... Eu sabia que ele não iria se comportar bem... Enfim, os muros colocados às margens do córrego não permitem mais que eu veja o esgoto destruindo a água que vem de nascentes, muito menos lembrar que, na infância, eu podia ver ainda as pedras enormes, arredondadas e amareladas ao longo do trajeto das águas... Lembrar quando  'franjas' verdes foram surgindo nas pedras avisando que o córrego estava sendo agredido...

Tudo isso juntou-se a ida até a loja de cosméticos que era em outro endereço, mas, comprou a grande última memória do centro comercial do bairro... A loja de dois andares dos Inoue's, que minha mãe tanto frequentava não apenas por ser amiga da família de japoneses, mas, porque eles vendiam tudo o que uma costureira como ela precisava. Eu cresci encostando naqueles balcões de madeira maciçaouvindo as conversas e mais tarde,  pedindo algum armarinho ou algo para minhas pinturas... Naquela época, ainda se usava a caderneta de fiado... Tudo aquilo desapareceu de vez. Quando sai da loja, parei na calçada e via o passado e o presente se sobrepondo.... O passado vai sendo apagado pelo presente...

Um nó me veio a garganta no caminho de volta pra casa... Parei na "ponte"  - que na verdade é a rua - onde eu, ainda tão pequenininha, implorava para minha mãe deixar eu olhar as águas: eu nem alcançava a mureta e precisava ser erguida... Hoje, na mesma mureta, muito ferro onde serão os trilhos e mais esgoto, apesar de, as águas estarem mais fortes e parecem estar mais determinadas. Segurei para não chorar..

Na casa da esquina, sr Laércio que já se foi... O bar do sr Lorival ali até hoje, onde meu pai e meu tio se encontravam e para onde há algum tempo atrás, meu tio "fugia" para rever os amigos... A casa da Zulmira, amiga e cliente da minha mãe, do mesmo jeito... E assim fui caminhando, lembrando que sempre que passavamos por ali, demoravamos para chegar em casa, pois, eram muitas paradas para cumprimentos e saber de novidades: até hoje se encontra um velho conhecido pelas ruas.... A casa da dona Neca, que foi professora de modelagem de minha mãe... A casa dos meus tios... Foi neste ponto que não aguentei segurar mais e chorei...

Uma cena estranha surgiu... Varias cenas em tempo diferentes com pessoas diferentes se sobrepunham até que ficasse apenas o que está hoje: vazio... Era ali que vi meu avô com seu sorriso largo que parecia um sol... Era ali que tia Marieta dava um tempo  de sua vida corrida porque ela queria fazer tudo... Era ali que meu tio disfarçava até pouco tempo, fingindo estar tomando um sol e olhando o movimento para, de repente, fugir pra papear com os amigos... Tio fujão!

O choro estava doído... Talvez, só agora eu esteja conseguindo ter um tempo pra processar as perdas... As pessoas que tanto amo estão longe ou já partiram... Talvez, eu não notaria o quanto o bairro mudou se eles ainda estivessem aqui... Porque não é sobre o bairro... É sobre minha história e as pessoas que tornaram possível que eu a escrevesse... Não é sobre o bairro... É sobre meu berço e minha origem!


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Uma Voltinha ao Passado de Shimada Coelho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.

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