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terça-feira, 25 de junho de 2019

Convite para Jantar


Ela vaga pelos corredores do supermercado como se estivesse em um labirinto, mas, nunca está buscando a saída: sempre mudam os produtos de lugar e ela sempre busca pelas mesmas coisas...

Enquanto seus olhos se embaralham com a poluição visual de rótulos diversos, os mesmos pensamentos se despertam, fazendo com que, ou ela acabe passando por onde deveria parar, ou fique parada parecendo olhar a prateleira que nada lhe tem para oferecer... Parecendo porque sua mente voa longe...

"Tenho cismas com corredores: lugares sinistros. Os corredores dos supermercados devem ser propositadamente agrupados desta forma para que o Efeito Corredor não se manifeste durante a noite, quando está vazio e tudo está escuro... Imagine a quantidade de pessoas passando por eles, deixando suas energias, inclusive com o toque - porque a maioria das pessoas vê com as mãos e não com os olhos. Se os corredores não estivessem dispostos da maneira que estão, haveria um acúmulo de energia e os supermercados seriam assombrados..."

"Por que há sabão para roupas brancas e sabão para roupas coloridas? Por que todos não são como esta única marca que deixa branco a roupa branca, mas, também limpa a roupa colorida sem deixá-la branca? Por que há shampoos de cabelos para cada estado em que o cabelo se encontra? Os fios são permeáveis para absorver cada promessa que está nos rótulos? Quanto tempo estarei gastando para descobrir em qual estado estão meus cabelos para saber qual o shampoo certo devo comprar? Os sucos são ligth, diet, zero açúcar e convencional... Por que não retiram logo de vez o açúcar dos sucos?"

Enfim, ela para na prateleira onde está aquilo que procura. Pensa em qual receita o produto servirá para fazer um belo jantar. Não nota que um senhor também para ali, próximo a ela, quase ao seu lado. Só nota quando ele começa a falar, olhando para os produtos, mas, se dirigindo a ela:

"- Tudo está tão caro, não é? Haja criatividade para levar a mesa algo merecedor de ser apreciado!"

Ela olha para ter certeza do que a certeza já havia revelado: ele estava falando com ela. A primeira impressão é de um senhor de cabelos grisalhos, cavanhaque, muito bem afeiçoado, do tipo Richard Gere. Ela se foca no comentário e responde:


"- É... Em tempos de dietas e intolerâncias alimentares nunca foi tão difícil apenas acalmar a fome..."

Ele riu. Comentou que pretendia fazer um Capeletti a Bolonhesa e para acompanhar apenas um bom vinho estava adequado. Ela ainda em dúvidas sobre o que iria escolher, apenas responde: "-É uma boa pedida!".

Ele virou-se à ela, estendeu a mão, olhou-a nos olhos e se apresentou dizendo seu nome, dizendo sua idade (65 anos de beleza e gentileza, foi o que ela constava), e ainda dizendo em qual local ali do bairro mora. Faltava-lhe entregar um Curriculum, como quem diz "não precisa ter medo, sou do bem". Hoje em dia, não se vê pessoas com um comportamento tão distinto.

"- Você sempre vem a este mercado? Eu sempre venho desde que inaugurou e nunca a vi aqui... Se tivesse visto em algum momento com certeza não passaria despercebido!" - disse a encarando, como se seus olhos rissem, mas, na verdade, brilhavam. "- Perdão por perguntar, mas, você é nissei?".


Ah, a pergunta que a coloca com um 'pé atrás', a faz recuar, a coloca em alerta! "Homens, por mais maduros que sejam, deixam de o ser quando estão diante de uma japonesa" - é o que ela pensa. O mito e as fantasias com japonesas vagam na mente de muitos homens...

"- Sou sansei, neta de japoneses... Também frequento este supermercado desde que inaugurou, mas, não com muita frequência..." - respondeu indiferente, focando-se nos produtos na prateleira como quem quisesse acabar com a conversa.

"- Perdoe-me o atrevimento, mas, você teria Whatsapp? Você a primeira vista me parece tão inteligente, além de ser muito elegante e educada. Seria um prazer enorme convidá-la para jantar, conhecê-la melhor... Com certeza teremos conversas bem agradáveis!".

Ela não virou apenas o rosto para ele: virando todo o corpo e colocando-se diante dele, encarando-o. Ficou por alguns segundos muda... Só ela sabia quantos pensamentos fluíam em sua mente naqueles míseros segundos...

"- Eu sinto muito!" - já revelando de imediato qual seria sua resposta final - "Você é um homem de postura incomum para os dias de hoje e com certeza seria uma ótima companhia para uma refeição e um bom papo, mas, infelizmente, nos encontramos aqui nesta prateleira justamente em um momento em que decidi me abstrair de qualquer tipo de relacionamento, pois, afinal de contas, somos adultos e não precisamos de firulas e jogos adolescentes para não encararmos aqui a que nível de relacionamento seu interesse desperta. Eu já sei como isso vai acabar e não há mais espaço para cicatrizes dentro de mim... Se me der licença, preciso ir. Parabéns, você é muito agradável!".

Deu meia volta, esqueceu-se do jantar, das compras, dos produtos, das prateleiras e do labirinto e encontrou a saída como se ali dentro só houvesse uma linha reta.

Por mais que ela tente se permitir as delícias que seu lado emocional tão sensível é capaz de levá-la, a racionalidade sempre falará mais alto, fazendo com que ela creia piamente nos padrões de comportamento, nas máscaras e ilusões que todos vestem, nos processos e consequências...

Hoje, ela se permite ser tudo o que pode ser, pra si mesma. Cansou de mergulhar nas ilusões e fantasias dos outros. Cansou fingir não enxergar e deixar seguir tudo aquilo cujo resultado para ela é tão previsível. O encanto nas pessoas que a levou a estudá-las foi extinto pelo desencanto que são capazes de gerar... A única pessoa que ela aceita que a decepcione e é capaz de perdoar é ela mesma...



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Convite para Jantar de Shimada Coelho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-CompartilhaIgual 4.0 Internacional.

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