"Mais vale ser criança que querer compreender o mundo."
Fernando Pessoa
Você vai estranhar e, até mesmo desacreditar no que eu vou contar: todas as minhas memórias até 10 anos atrás estão bem vívidas, como se tivessem acontecido ontem. Prova disto foi o espanto de minha mãe ao contar que estranhava a memória do meu nascimento, e ao relatar a ela como foi. Ela apenas indagou "Como é possível? Foi exatamente assim!". O 'exatamente assim' tem relação com meu relato sobre me sentir 'espremida' e ouvir uma voz dizendo "Tá vindo já, mãe, faz força!" - após isso, uma luz intensa fez doer meus olhos.
Lembro de compreender tudo o que mamãe dizia. Lembro de tentar ficar sentada: a visão ia além do teto ou das laterais do berço. Lembro de descobrir que os dedos dos pés mexiam e não saber como aquilo funcionava. Lembro de cismar com a tranca da lateral do berço, que abria: minha mãe achou melhor amarrar para minha segurança. Lembro de ficar de pé pela primeira vez e da força que fazia pra me manter firme, segurando-me nas laterais do berço.
São muitos memórias, mas, quero falar de uma que corresponde a esta imagem. Eu devia ter entre três ou quatro anos: aprendi a andar logo depois de completar 9 meses...Não me lembro quem me levava para o quintal dos fundos - cujo terreno ficava abaixo do nível da casa.Ali foi quando comecei a criar meu Universo pessoal. Haviam patos, galinhas, galos, codornas, horta: tudo era incrivelmente fascinante e me encantava. Lembro-me de observar muito as plantas: acenei muitas vezes pra elas, até compreender que era o Vento quem as balançavam, rs. Infelizmente, naquela época eu ainda não conhecia Fernando Pessoa... Aquela criança que fui sempre esteve aqui, mas, quanto Conhecimento ela acabou adquirindo! E observando os dias atuais, quem pode dizer que seja uma vantagem, quando tudo se mostra tão óbvio e esta obviedade não é agradável...
Por alguns meses observei as plantas: a diferença nos tons de verde, nas formas, tamanhos, que umas davam flores e outras não, que umas eram consideradas pragas ou 'mato' e que mesmo sendo mato, os cães e gatos gostavam de comê-las. Algumas, preferem estar sempre expostas ao sol, outras a luz indireta e outras, se sentem melhor à sobra das outras: estas tem um verde bem escuro... Eu tinha meus pais para me dar respostas sobre as plantas, sempre que eu perguntava e como eu perguntava!
Meu hiperfoco se ampliou quando ao observar uma das maiores folhagens que havia, vi nela uma Joaninha. A observação era feita de uma certa distância, para comparar com o tamanho das demais folhas, mas, aquele pontinho tão vermelho, era nítido, impossível de não se notar.
Cheguei bem próximo àquela folha gigantesca - na minha visão era enorme - e todo meu foco se prendeu a aquele inseto tão pequenino que, apesar de seu tamanho, anulava a presença de tudo o que havia ao redor. Ela tinha um brilho, como quando papai passava verniz em madeira. Busquei ao redor algo que tivesse um vermelho tão intenso e não encontrei. Ela tinha pintas pretas, que faziam o vermelho e as pintas se destacarem ainda mais. Eu não acredito em acaso: anos depois, na escola, uma colega se sala seria vítima do que hoje chamam bullying, por ter sardas no rosto... De imediato lembrei da beleza da Joaninha... Me aproximei dela e fiz uma bela amizade com ela. De alguma forma, o simples fato de nos tornamos amigas, fez com que cessassem as piadinhas de mal gostoso e o apelido "banana split".
Voltemos para a folha enorme, onde a Joaninha se mantinha imóvel. Eu a observei por todos os lados, tentando saber o que ela fazia ali... parada... Acho que ela estava gostando de ser apreciada... Me mantive pertinho para memorizar cada detalhe, me afastei e ia me afastando pra saber de quão longe era possível encher um pontinho tão vermelho. Ate que cansei, e assim como a Joaninha, fiquei ali parada, como ela, apenas a observando: talvez, ela estivesse observando algo também. Então, me lembrei do meu avô japonês, sentado ao lado do pequeno jardim da minha tia, onde ele também morava. Ele estava tomando sol, mas, ficava olhando as plantinhas assim, imóvel, feito a Joaninha.
De repente, as asinhas se abriram como uma espreguiçada, começou a bater e se foi. Seja lá o que a Joaninha e meu avô faziam, fez com que eu me sentisse muito bem! Deitei no chão de terra, embaixo da 'cobertura de chuchus' - um tipo de pérgula suspensa para o Chuchuzeiro se enroscar - e ali, eu continuei, observando as folhas balançando como em um cumprimento, os fachos de luz solar atravessando as brechas entre as folhas... Naquele momento eu acreditava que o mundo todo era apenas aquilo: o quintal dos fundos...
Anos depois, descobri que o mundo era muito maior do que eu imaginava e aquilo que meu avô fazia todo dia - e talvez a Joaninha também - se chama Contemplação e Meditação.
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